Para começar é melhor dar a palavra ao teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer que, numa conferência aos alunos de um seminário clandestino, em plena época de perseguição nazista, teceu interessantíssimas considerações a respeito da comunhão cristã:
Vezes sem conta relacionamentos cristãos faliram porque viviam de um ideal. Justamente o cristão sério, que se vê integrado pela primeira vez a uma comunidade cristã, trará em sua bagagem uma ideia bem definida de como deve ser a vida fraternal e se empenhará por realizar essa ideia. No entanto, a graça de Deus logo levará tais sonhos ao fracasso. A grande desilusão com os outros, com os cristãos em geral e, se tudo correr bem, também conosco mesmos, há de nos vencer tão certo como Deus quer levar-nos ao conhecimento da comunhão cristã autêntica. Em sua imensa graça Deus não permitirá que vivamos nesse ideal nem mesmo por algumas semanas, que nos entreguemos àquelas experiências embriagadoras e a essa euforia empolgante que nos assalta como um êxtase. Pois Deus não é Deus de emoções, mas da verdade. Somente a comunhão que passa pela grande desilusão com os seus aspectos desagradáveis e maus começa a ser o que deve ser diante de Deus, começa a apossar-se na fé da promessa que ela tem. Quanto mais cedo o indivíduo e a comunidade sentirem essa desilusão, tanto melhor para ambos. A comunhão, porém, que não suporta tal desilusão, ou a ela não sobrevive — e que insiste, portanto, em seu ideal quando esse deveria ser desmantelado — essa comunhão perde, nesse momento, a promessa de comunhão cristã duradoura. Ela se desmanchará cedo ou tarde. Qualquer ideal humano introduzido na comunhão cristã perturba a comunhão autêntica — e precisa ser eliminado, para que a comunhão autêntica possa sobreviver. Quem ama seu ideal de comunhão cristã mais do que a própria comunhão cristã, esse a destrói, por mais sincero, sério e delicado que seja em seu intento.
O parágrafo acima pertence ao livro Vida em Comunhão (Gemeinsames Lebem), publicado em 1939. E faz um alerta oportuno e necessário: a verdadeira comunhão do corpo de Cristo, a igreja, é aquela que se baseia em elementos concretos, e não em ideais ingênuos.
Fundamentar a comunhão em elementos concretos significa ter plena e clara consciência de que lidamos com pessoas — e pessoas são feitas de carne e osso, emoções e sentimentos, ideias e pensamentos, experiências e hábitos, defeitos e limitações. Não são máquinas programadas, mas seres contraditórios, fugidios, surpreendentes e resistentes a qualquer tipo de enquadramento rígido. São agradáveis, dóceis e tolerantes. Ao mesmo tempo são irritantes, agressivos e impacientes. Em certos momentos são o médico, em outros são o monstro. Todos nós somos, em parte, Dr. Jeckyll e, em parte, Mr. Hyde — como na história de Stevenson.
Mesmo os que têm fé e procuram obedecer fielmente os princípios bíblicos, vivendo com sinceridade a nova vida em Cristo, possuem impulsos incompatíveis com a proposta de amor e compaixão do Evangelho.
A comunhão fraterna no corpo de Cristo não pode ser sustentada por expectativas fantasiosas e perfeccionistas. Somente partindo do que realmente somos, e do que são os outros de fato, conseguiremos experimentar a verdadeira vida de comunhão cristã.
Caso contrário, estabeleceremos laços de convívio tão frágeis que se romperão diante do primeiro desentendimento ou dos conflitos mais simples.
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