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quinta-feira, 22 de julho de 2010

Comunhão com os Pés no Chão - 1

Para começar é melhor dar a palavra ao teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer que, numa conferência aos alunos de um seminário clandestino, em plena época de perseguição nazista, teceu interessantíssimas considerações a respeito da comunhão cristã:


Vezes sem conta relacionamentos cristãos faliram porque viviam de um ideal. Justamente o cristão sério, que se vê integrado pela primeira vez a uma comunidade cristã, trará em sua bagagem uma ideia bem definida de como deve ser a vida fraternal e se empenhará por realizar essa ideia. No entanto, a graça de Deus logo levará tais sonhos ao fracasso. A grande desilusão com os outros, com os cristãos em geral e, se tudo correr bem, também conosco mesmos, há de nos vencer tão certo como Deus quer levar-nos ao conhecimento da comunhão cristã autêntica. Em sua imensa graça Deus não permitirá que vivamos nesse ideal nem mesmo por algumas semanas, que nos entreguemos àquelas experiências embriagadoras e a essa euforia empolgante que nos assalta como um êxtase. Pois Deus não é Deus de emoções, mas da verdade. Somente a comunhão que passa pela grande desilusão com os seus aspectos desagradáveis e maus começa a ser o que deve ser diante de Deus, começa a apossar-se na fé da promessa que ela tem. Quanto mais cedo o indivíduo e a comunidade sentirem essa desilusão, tanto melhor para ambos. A comunhão, porém, que não suporta tal desilusão, ou a ela não sobrevive — e que insiste, portanto, em seu ideal quando esse deveria ser desmantelado — essa comunhão perde, nesse momento, a promessa de comunhão cristã duradoura. Ela se desmanchará cedo ou tarde. Qualquer ideal humano introduzido na comunhão cristã perturba a comunhão autêntica — e precisa ser eliminado, para que a comunhão autêntica possa sobreviver. Quem ama seu ideal de comunhão cristã mais do que a própria comunhão cristã, esse a destrói, por mais sincero, sério e delicado que seja em seu intento.

O parágrafo acima pertence ao livro
Vida em Comunhão (Gemeinsames Lebem), publicado em 1939. E faz um alerta oportuno e necessário: a verdadeira comunhão do corpo de Cristo, a igreja, é aquela que se baseia em elementos concretos, e não em ideais ingênuos.
Fundamentar a comunhão em elementos concretos significa ter plena e clara consciência de que lidamos com pessoas — e pessoas são feitas de carne e osso, emoções e sentimentos, ideias e pensamentos, experiências e hábitos, defeitos e limitações. Não são máquinas programadas, mas seres contraditórios, fugidios, surpreendentes e resistentes a qualquer tipo de enquadramento rígido. São agradáveis, dóceis e tolerantes. Ao mesmo tempo são irritantes, agressivos e impacientes. Em certos momentos são o médico, em outros são o monstro. Todos nós somos, em parte, Dr. Jeckyll e, em parte, Mr. Hyde — como na história de Stevenson.
Mesmo os que têm fé e procuram obedecer fielmente os princípios bíblicos, vivendo com sinceridade a nova vida em Cristo, possuem impulsos incompatíveis com a proposta de amor e compaixão do Evangelho.

A comunhão fraterna no corpo de Cristo não pode ser sustentada por expectativas fantasiosas e perfeccionistas. Somente partindo do que realmente somos, e do que são os outros de fato, conseguiremos experimentar a verdadeira vida de comunhão cristã.

Caso contrário, estabeleceremos laços de convívio tão frágeis que se romperão diante do primeiro desentendimento ou dos conflitos mais simples.

Comunhão com os Pés no Chão - 2

Certas passagens bíblicas insinuam, de modo muito sutil, que a prática da comunhão cristã não é fácil, nem fluida, e exige empenho, boa-vontade, resignação e paciência.

Quando lemos, por exemplo: “Façam todo esforço para conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (Efésios 4.3) — logo percebemos que a advertência feita pelo apóstolo em favor de esforços para a preservação da unidade do corpo de Cristo é, no mínimo, um chamado à tolerância, ao sacrifício e à renúncia, sem os quais não há como manter ou fortalecer os laços de comunhão e fraternidade.

Outro exemplo: “Suportem-se uns aos outros” (Colossenses 3.13) e “suportando uns aos outros em amor” (Efésios 4.2) são expressões que equivalem a algo parecido com “calma, conte até dez”, que costumamos usar em português.

Embora muitos insistam em traduzir o termo suportar como dar suporte, sustentar ou amparar, o verbo grego (anecomai) é usado em outros textos, como Mateus 17.17, 1 Coríntios 4.12, 2 Coríntios 11.1, no sentido de aguentar e tolerar. Também aqui flagramos uma forte conotação de sacrifício e empenho para conviver com pessoas que, no mais das vezes e por razões diversas, são consideradas insuportáveis ou intoleráveis.

Gente chata, pessimista, lamurienta, hipocondríaca, implacavelmente crítica, tediosa, prolixa e maledicente pode provocar o afastamento dos outros, mas a orientação do apóstolo para suportarmos tais pessoas em amor justifica-se pelo fato de que motivações desconhecidas por trás de determinadas posturas e ações. Ou seja: ninguém é chato porque quer, e sim devido a condições específicas que, na história da sua formação, resultaram numa certa maneira de ser.

O rapaz negativista pode estar, simplesmente, se defendendo do medo de se frustrar. A moça com auto-imagem enfraquecida pode ter sido humilhada pelos pais durante toda a infância. A senhora hipocondríaca quer apenas chamar a atenção dos familiares para compensar carências afetivas. E assim por diante.

Para encerrar, basta recordarmos o significado da palavra amor no Novo Testamento. Nada tem a ver com afeto, simpatia, paixão ou romance. O amor cristão não depende das emoções ou dos sentimentos, pois é uma forte disposição mental para ajudar aquele que precisa — ainda que seja um desafeto, um perseguidor ou um inimigo.

Por isso mesmo somos capazes, conforme o ensino de Cristo, de orar por nossos opressores ou dar socorro aos que só querem nos prejudicar. Porque não se refere à afeição, mas ao desejo de pagar o mal com o bem em vez de buscar vingança.

Voltamos a Bonhoeffer: a autêntica comunhão cristã não se constrói sobre idealizações imaturas, expectativas ingênuas, padronizações de comportamento, sentimentos românticos e emoções fugazes.

Para fortalecer os laços de fraternidade entre irmãos em Cristo é necessário ter os pés bem fincados no chão. Aprender a conviver com as pessoas como são. Respeitar as diferenças. Dialogar com ideias opostas. Compreender prováveis motivações ocultas. Tolerar temperamentos difíceis. Acolher o semelhante com suas dessemelhanças. E aceitar o próximo com suas distâncias.

Só a essa atitude, promovida pela fé e cultivada pelo Espírito, podemos chamar de amor.


Pr. Carlos Novaes

http://carlosnovaes.blogspot.com/